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Falta de representatividade fortalece barreiras raciais na ciência e tecnologia

17/11/2017

Desde crianças, quando estudamos ciências na escola, as referências que recebemos são quase que exclusivamente formadas por cientistas brancos europeus. Tal realidade levanta uma pergunta: será que os povos de origem africana não colaboraram em nada com nossa ciência e tecnologias atuais? As inúmeras contribuições de cientistas negros e povos como os antigos egípcios respondem muito bem essa pergunta. Entretanto, a falta de representatividade em nossa sociedade faz com que muitas pessoas não tenham consciência disso.

A exclusão dos negros e negras não fica apenas na história da ciência. Atualmente, esse grupo é minoria entre os pesquisadores e profissionais das áreas tecnológicas. De acordo com o CNPq, em 2015, estudantes negros representavam apenas 26% do total de bolsistas.

A ativista Bárbara Paes conhece muito bem as barreiras impostas às pessoas negras no setor tecnológico, sobretudo em relação às mulheres. Em 2015, ela e outras colegas de luta criaram o coletivo Minas Programam, dedicado a combater o machismo e discriminação na tecnologia.

Atualmente, Bárbara cursa pós-graduação em Cultura, Educação e Relações Étnico-Raciais e também escreve sobre racismo e representatividade.  Em entrevista ao SINTPq, ela comentou sobre como o preconceito racial ainda impõe barreiras à participação das pessoas negras na ciência e tecnologia.

SINTPq: Em seu projeto Minas Programam, você e outras integrantes militam contra o machismo e a inserção da mulher no ambiente tecnológico. Como surgiu essa iniciativa e o que poderia ser feito em relação a questão étnica? Machismo e racismo se relacionam no setor tecnológico? 

Bárbara Paes: O Minas Programam surgiu em 2015, eu, Fernanda e Ariane estávamos envolvidas de diferentes formas com debates relacionados a política, direitos humanos e tecnologia. Todas as co-fundadoras compartilhamos valores feministas e assim, a baixa presença e visibilidade das mulheres na tecnologia se fazia cada vez mais evidente. Assim tivemos a ideia de criar o Minas Programam: queríamos um espaço em que mulheres pudessem ensinar e aprender sobre programação sem ter que lidar com machismo dentro da sala de aula. Ao mesmo tempo, sabíamos da importância de olhar para questão racial, especialmente em um país como o nosso. Por este motivo, o Minas Programam se preocupa em sempre trazer mais mulheres negras para as nossas atividades.

SINTPq: Segundo dados do CNPq, em 2015, estudantes negros representavam apenas 26% do total de bolsistas, sendo que no Brasil mais de 50% da população é negra. Quais motivos você considera serem a causa dessa estatística?

BP: As causas dessa estatística são várias. Um primeiro apontamento que poderia ser feito é a quantidade ainda pequena de estudantes negros presentes no ensino superior. Uma segunda questão é a insuficiência das políticas de permanência na universidade, o que faz com que muitas pessoas negras não tenham condições de se dedicar a atividades de pesquisa.

SINTPq: Civilizações africanas, como o antigo Egito, contribuíram expressivamente com conhecimentos nas áreas de engenharia, astronomia e matemática. Entretanto, as referências científicas apresentadas nas escolas são quase que exclusivamente formadas por homens brancos europeus. De que forma essa realidade interfere na representatividade e na motivação das crianças negras em ingressar nas áreas tecnológicas?

BP: Vivemos em uma sociedade que é muito moldada pelas noções de gênero e raça, e as pessoas vivem rodeadas por preconceitos e estereótipos relacionados a pessoas negras. Como resultado, todos temos reações e expectativas, conscientes ou não, que são baseadas em estereótipos de raça, gênero, sexualidade e classe. Estando inseridos nesse contexto simultaneamente racista e misógino, educadores são impactados pela enorme carga de imagens negativas associadas ao intelecto de pessoas negras.

Quando as escolas, os livros, e educadores deixam de mencionar os feitos e contribuições de pessoas negras para a construção da ciência, eles estão contribuindo para gerar uma noção falsa de que as pessoas negras não são aptas para o ambiente acadêmico. Isso acaba afetando a autoestima intelectual e a trajetória educacional de crianças negras.

SINTPq: De que forma nossas escolas poderiam contribuir com a representatividade e funcionar como ambientes de incentivo para as crianças desenvolverem todo o seu potencial? Você conhece bons exemplos que poderiam ser mencionados?

BP: É preciso que as escolas adotem estratégias específicas para promover um ambiente mais diverso e plural. Algumas coisas que podem ser feitas incluem a adoção de materiais didáticos que estejam em conformidade com o intuito da Lei 10.639, que visa promover o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas. Uma questão que surge frequentemente é que muitos educadores não têm formação específica sobre os temas de gênero e relações raciais - o que os impede de exercer plenamente o papel que lhes é esperado. Isto é, o papel de contribuir positivamente para que a trajetória de estudantes negros seja bem-sucedida. Portanto, é preciso criar oportunidades de aprendizado e treinamento para educadores, a fim de garantir que eles compreendam e incluam uma perspectiva de gênero e levem em consideração questões raciais no seu trabalho.  Ademais, é importante que as escolas contratem mais educadores negros e promova atividades educacionais diversas para todos os alunos, sem distinção de raça.

SINTPq: O discurso da meritocracia é muitas vezes utilizando para diminuir a luta contra o preconceito, utilizando casos de negros e negras bem-sucedidas para responsabilizar o indivíduo por sua ascensão social, desviando assim o foco das questões sociais. Você observa situações como essa na área da tecnologia? Na sua opinião, como é possível superar esse discurso?

BP: O uso da narrativa da meritocracia é super frequente e é bem comum que pessoas usem os "casos exceção" para tentar provar o falacioso ponto de que vivemos em uma sociedade igualitária onde qualquer pessoa tem acesso às mesmas oportunidades. Na minha opinião, a primeira coisa a fazer é descontruir essa falácia. É preciso olhar o cenário como um todo, ter um olhar voltado para as estatísticas e dados. Ou seja, olhar para trajetórias individuais de sucesso não é o caminho para pensar soluções para um problema estrutural.

por Ricardo Andrade
Redação SINTPq