Entidades se unem em defesa de recursos para C,T&I
Fonte: Replicado do Jornal da Ciência *Artigo de Renato Dagnino, professor titular de política científica e tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Texto enviado ao JC Email pelo autor.
Como a muitos leitores do JC E-mail, me surpreendeu o Manifesto "Em defesa da Ciência, da Tecnologia e da Inovação", assinado pela CNI, Fiesp, Firjan, Fiep, Fieb, Fiemg, SBPC, ABC, Anpei e Anprotec, publicado em 20/03. É a primeira vez, desde quando há mais de três décadas comecei a estudar a política de C&T (PCT), que tenho notícia de um manifesto elaborado por dois atores políticos - a comunidade de pesquisa e os empresários - com valores e interesses(ou projetos políticos) tão distintos. Daí minha disposição de entendê-lo oferecendo aos colegas uma interpretação orientada a apontar caminhos para essa política pública que a coloquem mais próximo do que me parece ser o interesse público.
O que fundamenta a aliança entre esses atores e pretende legitimá-la perante a sociedade parece ser a afirmação que aparece no final de seu terceiro parágrafo: "A pesquisa científica e tecnológica é base para inovação e para a formação de recursos humanos qualificados, com impactos significativos no crescimento e na geração de riquezas".
Para comentar a afirmação há que identificar e decompor as suas partes. Decompondo a sua primeira parte, não haveria o que criticar se o que se quer dizer é que a pesquisa científica feita nas universidades e institutos de pesquisa públicos pelo primeiro ator é base para a formação de recursos humanos qualificados, e que a pesquisa tecnológica (ou, mais propriamente, a pesquisa de desenvolvimento tecnológico - P&D) feita na empresa pelos segundo ator é base para a inovação.
Mas, a julgar pelo que a comunidade de pesquisa tem apregoado em várias oportunidades, não é essa a interpretação "correta". O que se afirma é o que está de fato escrito: a pesquisa científica e a formação de pesquisadores (que têm lugar nas universidades e institutos de pesquisa públicos) capacitados para o desenvolvimento tecnológico (na empresa), realizadas pelo primeiro ator, alavancaria a inovação introduzida no mercado pelo segundo para aumentar seu lucro. Em relação à segunda parte não há duvida, o que se afirma, é que o resultado buscado por aquelas três atividades (não temporalmente, mas analiticamente), a inovação, produziria impactos benéficos para o País e para conjunto da sociedade.
Essa hipotética cadeia linear da inovação, que não por acaso confere um papel central à comunidade de pesquisa,contribuiu para que ela se afirmasse como o ator dominante da PCT. A cadeia teve seu primeiro elo criticado, já no final dos sessenta, na América Latina. Nos países de capitalismo avançado, partindo de uma perspectiva distinta, não orientada por considerações sociais, testar a sua veracidade foi o que levou, uma década mais tarde, ao surgimento da Economia da Inovação. Desde então, ela têm argumentado que, lá, a inovação - o conhecimento produzido na empresa e materializado em novos produtos e processos - pouco se utiliza do conhecimento desincorporado resultante da pesquisa científica.
Comprova o que argumenta a Economia da Inovação o fato de que somente 1% do que gasta a empresa estadunidense em P&D é contratado com universidades e institutos de pesquisa. O que é importante para a empresa é o conhecimento incorporado em pessoas: é para lá que vão 70% dos mestres e doutores que se tornam pesquisadores fazendo pesquisa na universidade.
Sobre a segunda parte da afirmação, que está associada ao segundo elo da cadeia, a situação é semelhante. Não há evidência empírica que autorize transformar a correlação positiva que existe entre o gasto em P&D e renda per capita, quando se considera a informação relativa a vários países num determinado ano, na relação de causalidade que a comunidade de pesquisa costuma dela inferir. Análises diacrônicas comparando taxas de variação desses dois indicadores para vários países durante um período razoável de tempo mostram que não se pode afirmar que exista uma correlação positiva entre eles e que, em muitos casos, o que se verifica é o contrário. Ou seja, nada tem de "científico" afirmar que um aumento da relação entre o gasto em P&D e o PIB leva ao crescimento econômico.
Num país onde há mais de quarenta anos se aprendeu a diferença entre crescimento e desenvolvimento é difícil aceitar o que vem em seguida, no quarto parágrafo. De fato, como aceitar a afirmação de que a inovação das empresas é capaz de fazer o País "melhorar seus índices sociais" quando nem sequer o crescimento ela assegura e quando há inúmeras evidências de que no mundo inteiro o que se vem observando é o contrário.
No mesmo diapasão e no mesmo parágrafo, o Manifesto afirma que a elevação do nosso gasto em P&D - estimado em 1,2 % do PIB- é essencial para que seja alcançado o que, segundo afirma, seria seu objetivo maior. Isto é, distribuir renda, gerar empregos e transformar o País. Ao tentar impedir que se interrompa a tendência de crescimento do gasto público em P&D que vem ocorrendo nos últimos anos - estimado em 0,63% do PIB - o Manifesto estaria contribuindo para aquele objetivo. Mais do que isso, estaria, como afirma textualmente logo adiante que estaria cuidando do futuro ao impedir que o desenvolvimento científico e tecnológico do País seja comprometido.
Entretanto, embora o Manifesto considere que o gasto privado em P&D - estimado em 0,57% do PIB- contribui para aquele objetivo maior e reconheça que ele é muito baixo e deve aumentar, ele não menciona nenhum compromisso dos empresários para fazer com que este gasto acompanhe a tendência de crescimento do gasto público. Sem falar que se mantém como referência uma porcentagem de gasto privado que corresponde a um valor absoluto sabidamente superestimado. Entre outras coisas por incluir o gasto em P&D de empresas estatais e não-privadas, como a Petrobras. E, também, por abstrair o que mostra a PINTEC a respeito do fato de que a soma dos gastos em P&D das empresas, incluindo as estatais, que inovam (e que, é legítimo supor são as únicas que fazem P&D) é de um pouco mais do que 0,3% do PIB.
Ao invés de um compromisso, o que se observa por parte dos empresários é um comportamento inverso ao que postulam aqueles que aceitam a existência daquela cadeia de inovação. Esse comportamento, a julgar pelas quatro edições da PINTEC-IBGE, torna difícil entender o porquê da sua aliança com a comunidade de pesquisa explicitada no Manifesto. O que se observa no período 1998-2008 coberto por elas é uma tendência decrescente do gasto privado em P&D. De fato:
- a parcela da Receita Líquida alocada pelas empresas industriais inovadoras em atividades de inovação, que indica o seu esforço inovativo e sua responsividade ao aumento da oferta de recursos públicos para a inovação, diminuiu de 3,8% para 2,5% (uma queda de 35%) e a orientada à P&D permaneceu estável em 0,6%;
- as inovadoras que realizam P&D para inovar diminuíram de 33% para 11% (uma queda de 67%) e as que adquirem para tanto máquinas e equipamentos se mantiveram em cerca de 60%;
- as inovadoras que apontaram a P&D como importante para sua capacidade de inovar diminuíram de 34% para 12% (uma queda de 65%), e as que apontaram a aquisição de máquinas e equipamentos se mantiveram em cerca de 80%;
Mas há outras evidências que, ao mostrar que as empresas não se interessam em realizar P&D, colocam em dúvida o a razão que teria levado à elaboração do Manifesto. De fato:
- entre as empresas pesquisadas pela PINTEC que não inovaram, a parcela que apontou como o maior obstáculo à inovação a "escassez de fontes de financiamento" chegou a ser de apenas 12%, enquanto que a que entendeu serem "condições de mercado" alcançou 70%. O que indica, por um lado, que os empresários não têm muito interesse pelos recursos que lhes oferece o governo. E, por outro, que seu comportamento pouco inovativo é uma resposta racional aos sinais do mercado periférico;
- das inovadoras somente 7% se relacionam com universidades e institutos de pesquisa e 70% destas consideram estas relações de baixa importância. O que mostra que, tal como ocorre nos países desenvolvidos, este tipo de relação entre aqueles dois atores, além de escassa, não é significativa para as empresas;
- dos 90 mil mestres e doutores formados em "ciências duras" entre 2006 e 2008, apenas 68 foram contratados para realizar P&D em empresas. O que indica que, muito ao contrário do que lá ocorre, este tipo de relação, que é a que efetivamente pode alavancar a inovação, é aqui insignificante.
Essas evidências mostram, por um lado, um comportamento dos empresários pouco coerente com o argumento da cadeia linear. Por outro, evidenciam que seus interesses são tão divergentes daqueles da comunidade de pesquisa, que é aqui hegemônica na elaboração da PCT, que nem os recursos financeiros nem os humanos que ela lhes oferece são utilizados. O que, então explica a aliança que o Manifesto sugere existir?
Como tenho ressaltado em outras ocasiões, a PCT apresenta um caráter atípico que faz com que ela apareça para a sociedade envolta por uma neblina ideológica; como uma política pacífica, "consensual"; como uma "policy" sem "politics". E que isso é assim porque aquilo conforma a agenda particular que os atores com ela envolvidos levam para o processo decisório das políticas atípicas não são seus respectivos projetos políticos, como ocorre nas políticas "normais". Embora conservem seu projeto político, como atesta a sua participação nessas políticas, os atores absorvem um atributo relacional que é intrínseco às políticas atípicas, que chamo de modelo cognitivo da política, que é a forma como o ator hegemônico entende as relações que cercam o seu objeto e pautam o que ele considera ser a melhor forma de conduzí-la. Modelo cognitivo, este, que fica impregnado naquela área de política passando a constituir a forma como ela deve ser entendida e operada em benefício, como se isto fosse possível, de todos.
Na PCT, esse modelo cognitivo decorre da concepção da Neutralidade e Determinismo da Tecnociência. Professada tanto pelo seu segmento conservador, que se refugia na ética para se desresponsabilizar do seu "mau uso" (como se os valores do capital e da exclusão já não estivessem nela impregnados quando da sua concepção), como pela esquerda da comunidade de pesquisa que a reconhece como opressora hoje, mas que amanhã permitirá a construção do socialismo, essa concepção é o que fundamenta o modelo cognitivo das políticas de C&T e de ensino superior.
No que respeita ao Brasil, procurei mostrar em 2007, na revista Ciência e Cultura da própria SBPC, que eram membros "inovacionistas" da nossa comunidade de pesquisa "travestidos" de empresários os que defendiam em foros onde se discutia a PCT o que aqueles supunham que deveriam ser os interesses destes. E que estes, ainda que não estivessem convencidos do que se dizia, nem dispostos a engrossar os pleitos que os colocavam como seus beneficiários, não se manifestavam com o intuito de expressá-lo.
De lá para cá, dois movimentos que se fortalecem contribuem para explicar a aliança. O primeiro, está associado ao verdadeiro bombardeio que vêm há tempo fazendo aqueles "inovacionistas" acerca da importância da inovação na empresa para o desenvolvimento social. É o que denomino "mantra da inovação", que sintetiza ideias como as que se criticou acima. Apesar de evidências como as recém indicadas, ele se difundiu sob o impulso dos "inovacionistas". O fato de que o "mantra" tenha ganhado adeptos até mesmo no âmbito do segmento de esquerda da comunidade de pesquisa dá uma ideia do impacto que deve ter gerado no empresariado: ao que tudo indica, ele passou crescentemente a ecoá-lo.
O segundo movimento, animado pelo primeiro, é o que protagonizam os empresários no seu intento de reagir, de forma tardia e assustada, à desindustrialização. Culminando um processo incubado há mais tempo, só agora é que ela passa a preocupar os segmentos do minguante empresariado industrial nacional mais influentes nos círculos de governo. A concorrência de produtos importados, a interrupção da tendência de queda dos salários, a diminuição do seu poder de oligopólio devido à entrada de empresas estrangeiras, a perda de sua competitividade no mercado externo de manufaturados, o "exemplo" do sucesso da agroindústria que soube mobilizar a seu favor o nosso potencial tecnocientífico, são fatores que devem ter aproximado os empresários da comunidade de pesquisa.
Tendo explicado o porquê da aliança entre a comunidade de pesquisa e os empresários que o Manifesto sugere existir, e explicitado a sua fragilidade, concluo retomando o que escrevi no início. Se, ao contrário do que ele prega, a pesquisa científica não conduz à inovação e, mais do que isto,a inovação não leva ao desenvolvimento econômico e social, não há porque outros atores aceitarem a prédica que ele faz.
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