Notícias | Como é ser uma mulher negra na maior estrutura científica do país?

Como é ser uma mulher negra na maior estrutura científica do país?

Mulher negra e periférica, todos os dias a diretora do SINTPq, Lidiana Moraes, cruza Campinas até o CNPEM. Em conversa com o sindicato, Lidiana comentou como é ocupar diariamente o espaço científico.

19/11/2021

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Lidiana Moraes na entrada principal do acelerador de elétrons Sirius, localizado em Campinas/SP

A diretora do SINTPq, Lidiana Moraes, costuma brincar que todos os dias se teletransporta para a Suécia. Mulher negra e periférica, como ela mesma se define, a cada manhã Lidiana cruza Campinas até o CNPEM (Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais), onde atua como técnica em mecânica. O Centro é responsável pelo acelerador de elétrons Sirius, maior estrutura científica do Brasil. Em conversa com o sindicato, Lidiana comentou como é ocupar diariamente o espaço científico, que ainda é marcado por uma forte desigualdade racial.

O que significa para você ser uma mulher negra atuante na maior estrutura científica do país? Quais os desafios enfrentados na trajetória até aqui e também atualmente? 

Faço a leitura de que a geração a qual pertenço, está desempenhando a função de ocupar espaços que até então sequer era concebida a possibilidade de atuação. 

Ser uma mulher, CIS, Lgbtqia+ , periférica, atuante socialmente, mãe solo de dois e estar na maior estrutura científica do país, entendo ser o legado da geração a qual pertenço para as próximas. Nós estamos quebrando a hegemonia desses locais a duras penas. Expondo violências, nos posicionando por termos tido um "despertar social", isso faz com que violências "sutis", porém ainda atuantes, tanto social quanto institucionalmente, sejam nomeadas e expostas. 

Chegamos para ocupar, porém sem pertencer. Esse é o meu sonho para as próximas gerações. Penso que ao remover o questionamento "será que estou no lugar certo?’’da nossa cabeça nos trará uma energia que pode ser direcionada de modo revolucionário na busca por equidade.  

O rascismo estrutural não nos deixa respirar. É desafio desde antes de nascer...  Somos outro grupo, que vive em um outro contexto, com outro tipo de interação, de comunicação, de relacionamento. Todos os pontos presentes na nossa constituição pessoal são abomináveis em quaisquer lugares que tenhamos acesso. 

Não pode falar do jeito que sempre falou. 

Não pode andar do jeito que sempre andou. 

Não pode se vestir do jeito que sempre se vestiu. 

Não pode nem comer do jeito que sempre comeu. 

Não pode EXISITIR do jeito que sempre existiu.  

Então, particularmente, meu equilibrio vem do mantra: "agradeço o que meus antecessores fizeram pra que eu chegasse até aqui. Vou deixar melhor para os próximos."

Sinto uma responsabilidade associada a esse contexto e penso ser uma excessão à regra. Uma falha na Matrix (risos) de que sou exceção à regra que, por uma estratégia para a manutenção do poder, exerce a função social de cadastro de reserva.  

Acredito que fazer um recorte individual torna o discurso muito superficial e propício para servir à justificativas falaciosas acerca do processo de emancipação, ascensão social e modificação de realidades dentro do núcleo de origem.  

Entendo que, tendo em vista o projeto de Estado para exterminar a população negra do Brasil, eu sou uma excessao à regra. Acredito que ocupar o espaço de mulher preta em um núcleo de homogeniedade masculina e branca é a conquista que a minha geração toda deixará como legado, sabe?

Lidiana Moraes durante entrega de tablets arrecadados pelo SINTPq para crianças em situação de vulnerablidade - 30 de julho de 2021

Ainda é nítida a falta de pessoas negras ocupando espaços de conhecimento e desenvolvimento científico. Quais as principais causas desse cenário você observou ao longo da sua trajetória e ainda observa na realidade dos jovens negros de hoje? 

Sem dúvida é o plano de extermínimo e segregação da população negra brasileita. O processo escravizatório jamais deixou de exisitir. Jovens negros não têm o mesmo acesso e são condicionados para que seus olhares mirem apenas pra uma direção limitada. Local sempre de sub-humano, com um limite invisível "olha, pessoa negra, vc já chegou até aqui, não vai passar. Te deixo até esse ponto". Parece que a caminhada tem sempre que ter um aval de algum homem branco.  

Civilizações africanas, como o antigo Egito, contribuíram expressivamente com conhecimentos nas áreas de engenharia, astronomia e matemática. Entretanto, as referências científicas apresentadas nas escolas são quase que exclusivamente formadas por homens brancos europeus. De que forma essa realidade interfere na representatividade e na motivação das crianças negras em ingressar nas áreas tecnológicas? 

O racismo é uma das mais eficazes ferramentas de opressão que existe. O processo de apagamento histórico, a desumanização, o processo de pautar o ser que deve ser conquistado como alguém que precisa de permissão para existir é uma estratégia de guerra.  

Apagar a potência ancestral de um povo é algo fundamental para que aquela força mingue, se apequene diante das outras. Porque a ancestralidade e a potência do povo preto é algo que transcende. Somos o berço civilizatório, filosófico e científico.

O sistema racista não se sustenta se o mérito da grandiosidade nos for dado.

Diretora do SINTPq desde julho deste ano, Lidiana atuou ativamente na negociação coletiva e nas assembleias realizadas no CNPEM

De que forma nossas escolas, universidades e centros de pesquisa poderiam contribuir com a representatividade e inclusão das populações marginalizadas? Você conhece bons exemplos de iniciativas nesse sentido?

Cotas! Cotas! Cotas! Cotas! 

O sistema será realmente equilibrado quando todos puderem acessar todos os locais, motivados exclusivamente por afinidade. O sistema de cotas nas universidades foi um grande avanço. Em breve teremos a geração dos "filhos dos cotistas" e daí meu amigooo... (risos) tenho minhas expectativas. 

Sinto uma dificuldade enorme em discutir ou propor assuntos no campo da equidade racial, as decisões sobre aplicar a política social ou não é tomada por pessoas brancas, de uma geração que na maior parte do tempo está se queixando sobre ter sido obrigado a se enquadrar, pois o padrão comportamental que possuem já não é mais aceitável.

Tenho a percepção de que no campo profissional é necessário ter um processo responsável e de longo prazo. Primeiro avaliando qual é a estatística atual sobre pessoas negras e não negras. Segundo um preparo do ambiente com a realização do letramento racial do grupo não negro. Terceiro inserção de pessoas negras em grupos. 

A identificação, sensação de pertencimento só é possível quando a gente olha pro lado e vê gente que parece com a gente. As pessoas brancas fazem isso, o tempo todo, escolhendo por identificação. Nosso maior obstáculo ainda está no fato de que, quem escolhe não se parece conosco