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"O corpo preto é, por si só, um ato de revolta contra o Estado e sua política velada de genocídio"

Alex Sander Zok, diretor do SINTPq e profissional da Amazul, traz relatos e reflexões importantes sobre o racismo em nossa sociedade

22/11/2023

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Neste mês da consciência negra, o SINTPq traz uma entrevista especial com Alex Sander Zok. Engenheiro de formação, diretor do SINTPq e profissional da Amazul (Amazônia Azul Tecnologias de Defesa), Zok é atuante no movimento negro e constriu uma trajetória de luta contra o racismo. Confira a entrevista a seguir e as contribuições do dirigente sindical para esse importante debate social.

Poderia comentar sobre sua trajetória de vida e a relação com a sua luta contra o racismo?

Eu sou natural do Rio Grande do Sul, cidade de Rio Grande. E lá, ao contrário do que se pode pensar, tem uma comunidade preta bastante considerável porque lá existe um porto onde chegavam os escravizados. Então é uma cidade bastante preta. Até eu sair de Rio Grande, eu não sentia racismo. Em 2012, quando eu migrei para Florianópolis, Santa Catarina, comecei a perceber o racismo mais latente. A situação que me trouxe muito esse feeling, esse start, foi um momento em que fui pegar um ônibus em Florianópolis. Só tinha um lugar livre no ônibus, e era ao meu lado, e um rapaz branco não quis se sentar. Ficou uma coisa muito nítida, e ali eu senti o racismo de fato.

Quando eu estudava na Federal de Santa Catarina, me engajei dentro do movimento estudantil. Estava bem efervescente a discussão sobre as cotas raciais, que são uma medida de reparação histórica, tanto é que elas foram promulgadas em 2012. Eu acabei me engajando naquele momento, fazendo engenharia civil nesse período e fazendo parte do Diretório Central dos Estudantes. Lá eu comecei a me engajar e vi que a própria esquerda tem muita dificuldade de entender essas pautas, pois fica muito no âmbito social, com o pressuposto de que o social resolve o racial. E não é assim. Se fosse dessa forma, Vinícius Júnior não estaria sofrendo racismo.

A gente tem muitas pessoas que venceram a barreira social há muito tempo e ainda assim sofrem racismo. Um homem branco com um carro do ano é visto muito bem pela sociedade. Um homem preto com um carro do ano vai ser parado pela polícia, vai ser considerado que aquele carro não é dele, que foi roubado, que foi conquistado de forma ilegal. Então existem vários simbolismos que o corpo preto traz e que, infelizmente, o social por si só não resolve. Por isso, temos que fomentar essa consciência.

A Amazul está sendo questionada pelo Ministério Público Federal devido a alegadas irregularidades na implementação das cotas em seu concurso público. A empresa incluiu na relação final de cotistas todos os candidatos aprovados que fazem jus à cota, independentemente da classificação obtida na ampla concorrência. Um deles, por exemplo, alcançou o sétimo lugar na lista geral, posição suficiente para ser convocado sem necessidade da cota. Porém, a Amazul o admitiu como primeiro colocado entre os candidatos às vagas reservadas. Com isso, a cota de 20% virou um teto, em vez de ser um percentual mínimo de pessoas negras entrando na empresa. Como essa questão tem repercutido internamente e qual é a sua análise da situação?

Então, quanto a esse questionamento, que na verdade já virou uma ação jurídica, criou bastante alvoroço nos atingidos, nos últimos convocados, e pode ter uma grande repercussão junto aos trabalhadores. Já teve uma repercussão na mídia, um fato que é no mínimo curioso, ela alegou na ação que estava tentando beneficiar o cotista. E quando a gente vai olhar, analisar, não está se beneficiando em nada, muito pelo contrário.
A Amazul fez mea-culpa dizendo que, se tiver algum erro, estão dispostos a corrigi-los. Entretanto, na prática, não teve nada. Essa ação do Ministério Público demonstra que a Amazul não está cumprindo com aquilo que deveria, que é a reestruturação social, que é a questão da política de reparação.

A Amazul, inclusive, rebateu os argumentos do Ministério Público Federal dizendo que a lei de cotas é uma orientação, é uma recomendação e não precisa ser aplicada na sua literalidade. Esse argumento foi utilizado pelo jurídico. Então demonstra, de novo, a questão do racismo estrutural. Simbolicamente, o que a Amazul diz é o seguinte: eu vou ter o que a lei manda, 20%. Eu terei somente 20% de pretos no meu quadro de trabalhadores. Se eu tiver que ter mais pretos, eu não terei. Eu vou cumprir estritamente o que a lei manda e nada mais, nada menos do que a lei manda.

É muito triste a gente ter isso num argumento jurídico de uma empresa do porte da Amazul, diante de todo o debate social que já se teve sobre a cerca da política de reparação, popularmente conhecida como cotas, mas demonstra, de novo, o caráter da empresa conservadora, patriarcal, enrijecida, com uma visão conservadora a partir do militarismo, e prejudicando a população preta, nacionalmente falando.

Tem toda a questão do impacto psicológico dos trabalhadores que estão convocados. Será que eu vou continuar na minha vaga? Será que eu não vou? Houve toda uma instabilidade emocional em vários trabalhadores. Alguns, inclusive, já fizeram mudanças de casa, literalmente, de outros estados para a região de Sorocaba e São Paulo para estarem trabalhando na Amazul devido a um projeto de vida, uma certa estabilidade empregatícia e a Amazul colocou em xeque tudo isso.

Então é muito triste a gente ter isso na nossa sociedade, diante de todo o debate que já se tem colocado acerca da política de reparação, a todos os níveis, todas as esferas, desde as esferas mais medianas da justiça até as esferas superiores, e ainda assim a gente tem que estar provando por A mais B de que essa lei é legítima, de que ela tem que ser aplicada na sua integralidade e, se possível, potencializar a presença de pretos em espaços de poder. E aí não tem como a gente não falar do caráter racista da ação da Amazul, que, mesmo após a recomendação do Ministério Público Federal, de que a forma que estava sendo feita a convocação era errônea, manteve a sua forma de contratação.

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Esse caso reforça a importância das cotas nas universidades e serviços públicos...

A política de cotas, ainda que o termo cotas seja um termo pejorativo do ponto de vista mais popular, é uma política de reparação. A gente entende que na sociedade as pessoas que têm a pele mais retinta e têm uma marca africana mais acentuada do que outras tendem a ter mais discriminação, têm mais dificuldade para alcançar postos de poder e tudo mais, está vinculado diretamente com o histórico do nosso país. O Brasil foi o país que mais escravizou em número e por mais tempo. Então, essa chaga que o Brasil carrega na sua história vai levar muito tempo para ser curada. Tanto tempo quanto ela foi construída.

Gostaríamos de saber mais sobre sua atuação no movimento negro. De quais grupos você participa, como eles atuam e como é a sua participação nesses espaços?

Cheguei a ter participação no "28 de Setembro", que é um clube aqui de Sorocaba da população preta. Na militância, fizemos um movimento grande em Sorocaba, com uma marcha bastante populosa dedicada ao caso de George Floyd. Fiz parte  também do "Contraproposta", um coletivo mais voltado para o social, que também participou da construção da marcha preta por George Floyd. Essa morte foi um divisor de águas no movimento preto mundial. Depois dessa marcha, fundamos o movimento antirracista sorocabano, que faço parte hoje. Então é um movimento atuante, tanto é que montamos a marcha do dia 20 de novembro, seguindo na luta para termos mais consciência racial em nossa sociedade.

Quais reflexões sobre a questão racial você gostaria de compartilhar com a categoria e a sociedade em geral?

Se a gente reler a história e revisitar alguns locais que foram construídos pelo colonizador, que foram construídos pelo opressor, a gente vai ver que o corpo preto brasileiro é muito mais do que se diz. E existe uma política de genocídio, acho que isso é uma pauta que a gente tem que entender. O genocídio não se dá somente na questão de corpo, se dá na questão das mentes, na questão de cultura, na questão da filosofia, da forma de vida.

O pessoal fala sobre intolerância religiosa e que a gente tem que combater a intolerância religiosa, mas eu nunca vi nenhuma mesquita, nenhuma igreja evangélica, nenhuma igreja católica, nenhum templo budista, ser atacado como são os terreiros Brasil afora. Então esse ataque aos terreiros demonstra bem que não é intolerância religiosa, é racismo religioso. É uma forma de genocídio, porque eu julgo, pré-julgo, condeno tudo que se aproxima do corpo preto, se aproxima da cultura preta, se aproxima da cultura africana.

Muito do que o Brasil é hoje, não vou dizer tudo, porque tivemos contribuições de outras etnias, sim, mas muito do que o Brasil é hoje se deve aos conhecimentos, às técnicas, às tecnologias dos meus antepassados, dos meus ancestrais que vieram de África, dominando culturas e técnicas que o colonizador não detinha. Isso não é tratado. Então, quando a gente começar a entender que o papel das pessoas escravizadas no Brasil é para além de carregar peso e colher algodão e açúcar, poderemos ter mudanças.

Cada corpo preto hoje no Brasil é, por si só, um ato revolucionário. Cada corpo preto é um ato de revolta contra o Estado brasileiro, que até hoje tem como política pública, mesmo que de forma velada, o genocídio da população preta em todas as suas formas. Seja ela mental, seja ela física, seja ela cultural, filosófica, epistemológica, enfim, de todas as formas possíveis de se apagar, de se invisibilizar e de se condenar as políticas que se aproximam de África.